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domingo, 13 de agosto de 2017

Ventania





Ninguém compreende realmente o que é a solidão até ter que viver imerso nela. Mesmo sendo um Orixá, filho da poderosa Nanã, sofri o abandono e a solidão.

Alguns dizem que a minha mãe usou um feitiço para engravidar, por isso nasci diferente dos outros. Mas também soube que a bela Oxum o fez para curar sua infertilidade, e seu filho não nasceu como eu; pelo contrário, Logun Edé é belo e forte, o orgulho de seus pais.

Não sei o que realmente aconteceu para que eu assim nascesse, mas foi a vontade de Orunmilá, imagino que algo eu deveria dar ao mundo.

Porém o caminho não tem sido fácil.

Fui jogado no mar ainda um recém nascido. Ao me afundar, um imenso caranguejo arrancara grandes nacos da minha carne para devorar. Minha aparência, que já era ruim, ficaria pior, mas eu ainda não estava preocupado com isso, a dor era insana e lancinante; fiquei rouco de tanto gritar.

Quando perdi a noção do tempo e das horas, aquela linda mulher apareceu e espantou a besta que me devorava ainda vivo. Ela colocou-me em seu colo, sem se importar como eu me parecia, sem nem mesmo se lembrar que estava vestida com uma rica túnica azul e branca que agora estava se empapando de sangue e pústulas.

Ela começou a cantar uma canção doce e sonolenta. Isso junto ao balanço suave das águas no fundo do mar fizeram com que eu adormecesse. Quando acordei, estava coberto de folhas de bananeira e outro Orixá jovem me olhava com curiosidade.

Levantei-me imediatamente, envergonhado, mas foi rápido demais e a dor me paralisou por alguns instantes; o rapaz me apoiou e me ajeitou na cama com cuidado.

– Minha mãe disse que ganhei um irmãozinho, por isso vim te ver. Assim que estiver bem, podemos sair e caçar juntos, que achas?

Aquele rapaz tão forte e bonito como eu jamais seria estava me chamando de irmão? Chamando-me para fazer algo com ele, tratando-me como a um igual? A ingenuidade de se sentir amado provoca situações comoventes. Podia ver em seus olhos a segurança de ser amado pelos seus e por isso não podia conceber um mundo onde isso não existia.

Meus lábios tremeram e eu não soube responder, ao que a voz doce da mulher ecoou:

– Vejo que já conheceu Ogum, meu filho. Querido, seu irmão precisa se recuperar, por que não lhe dá um tempo? Quando estiver bem, certamente caçará contigo.

Eu estava cada vez mais surpreso. Minha mãe de verdade não me quisera por nenhum minuto, mas aqueles dois Orixás que eu conhecera estavam me tratando como um dos seus!

O rapaz chamado Ogum olhou-me com um ar de “Não se preocupe, tudo vai ficar bem!’’ e saiu, deixando-me a sós com a mãe dele.

– Meu nome é Iemanjá – Disse ela ao sentar-se ao meu lado segurando uma tigela de algo que tinha cheiro delicioso. – Mas para você, será sempre “mãe”.

Eu comi as coisas brancas que estavam naquela tigela, estava com muita fome. Depois pedi desculpas por minha rudeza e Iemanjá sorriu, e seu sorriso brilhava mais que o Sol.

Senti o amor e a segurança de um lar que originalmente me fora negado.

Por alguns anos, fui feliz com a minha família. O mar sempre foi território imprevisível e encantador, mas um dia tive que deixá-lo para ver o mundo e ser útil a ele – por que mais um ser tão horroroso como eu havia sido poupado?

Então o isolamento me atingiu como um chicote. Ninguém queria ser visto comigo, ou me tocar, ou conversar. Seres vivos e Orixás me evitavam, então tive que aprender a usar meu poder sem ajuda ou treinamento.

Sozinho, descobri os portais dos mundos que trazem a doença e morte, me concentrei em aprender e dominar tudo que podia. Tendo a disciplina como um de meus pontos fortes, rapidamente me tornei poderoso.

Os seres vivos procuravam a mim para que levasse a doença aos seus inimigos. Os Orixás não puderam mais me ignorar, e começaram os convites para as grandiosas festas em que todos se reuniam.

Eu não iria por causa de minha aparência, mas só de já ter sido convidado senti o coração acalentado. Minha mãe e meu irmão insistiram para que eu fosse, mas como eu poderia? Eles eram os únicos que haviam me aceitado. Ninguém mais o faria.

No dia da festa, Ogum veio a minha casa com uma capa de palha. Disse que era pra que eu pudesse ir a festa e dançar. Fiquei tão emocionado que aceitei, mas ao chegar imediatamente notei que aquilo não adiantaria de nada. Todos evitavam sequer passar por mim, imagine se conseguiria dançar com alguém.

Fiquei em consideração a Ogum e nossa mãe, mas quando estava pensando em sair sem que eles notassem Iansã chegou.

Aquela beleza acintosa, as roupas vermelhas, a energia de fogo e vento, os longos cachos negros, a pele de ébano macia e perfumada, tudo combinado para que ela fosse única. Fiquei deslumbrado! Decidi ficar apenas para olhá-la e admirar sua dança.

E que dança! Ninguém foi capaz de prestar atenção em nada que não fosse ela, dançava com garra, com paixão e fulgor. Brilhava no xiré mais do que qualquer outra.

Tomada pela paixão de sua dança, nossos olhos se encontraram: ela em toda a sua glória. E eu em minha capa de palha, tão pequeno, tão sozinho. Soube que ela me escolhera naquele instante, mesmo sem entender, aceitei a mão que me estendia.

Dançamos juntos perante os olhares perplexos e enojados da maioria. Meu irmão sorria de aprovação, minha mãe tinha a fronte erguida, orgulhosa. E Iansã sorria tentadoramente com sua maravilhosa boca.

Ao último toque da música, a belíssima Orixá assoviou e levantando as mãos, invocou os ventos, levando minha capa de palha para longe. Fechei os olhos para nãos ver a desaprovação estampada na face de todos, mas senti meu corpo ficar quente e depois muito leve. Ouvi suspiros de admiração e abri os olhos para perceber por mim mesmo o que Iansã estava fazendo.

Ela estava a tirar as feridas e cicatrizes do meu corpo e jogá-las para cima, transformando-as em pipocas. E ria, ria com gosto, com prazer, me convidando a rir com ela e deixar escapar a torrente de mágoa por todos esses anos de abandono.

Rimos e dançamos mais, a música recomeçou, eu via o olhar de admiração dos Orixás, agora eu era belo como meu irmão, finalmente meu exterior traduzia quem eu era por dentro.

Dancei com a bela Iansã por um tempo que não soube precisar.

Quando nos jogamos nos braços um do outro, cansados e felizes, não pude deixar de perguntar:

– Por que eu?

Ela me encarou de uma maneira encantadora:

– Por que você é especial.

– Como posso agradecer?

Ela fez um biquinho com os lábios.

– Já conheces a doença, agora conhecerás a saúde. Se disser sim, dividiremos o conhecimento dos mundos.

Eu sentia dentro de mim, palpitando de vida, o poder despertado por ela de trazer a cura as doenças que levo. O perfeito equilíbrio.

Ela continuou:

– Jamais serei sua, sou minha e apenas minha. Mas se disser sim, seremos companheiros para sempre. Aprenderemos juntos, governaremos sabiamente. Diga sim!

Iansã girou recomeçando a dançar e sua túnica vermelha rodopiou com ela. Toquei sua mão lhe dando o mesmo poder que eu possuo sobre os mortos.

– Sim! – Eu disse, em meio ao som da música e dos nossos risos.

Fim

Será?


Escrito por Naiane Nara – Taróloga e Escritora
Bruxa experiente no culto dos Gregos, caminha ao lado de sua guia que encanta à todos em suas orientações com Tarot. Vê o que ninguém vê, fala o que tem que ser dito. Recomendadíssima a consulta com essa mulher.
Perfil no Facebook: https://www.facebook.com/naiane.nara.1
Link Original: https://herancadosbardos.blog/2016/06/27/ventania/#more-4784

 

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